Poder compartilhado, mas ainda desperdiçado
Criar uma Unidade de Conservação é um ato de coragem. É como apoiar o surgimento de núcleos de poder que podem se insurgir contra seus criadores. É como perder o poder de intervir, de decidir, de fazer o que quiser, de voltar atrás, de barganhar, de usufruir... Ao criar Unidades de Conservação (UC), os governos abrem mão de gerir sozinhos uma região; chamam para essa tarefa outras instituições, sejam governamentais ou não, e devem submeter-se à vontade da maioria, mesmo que direcionada a caminhos diferentes aos interesses das forças políticas. Mesmo que o Conselho Gestor da UC tenha caráter apenas consultivo, ali se pratica o poder legítimo e as associações que dele participam podem ter oportunidade de intervir em seus próprios destinos. É o modelo “participativo” de gestão, democrático em sua essência e potencialmente poderoso contra possíveis falhas do poder público ou exageros na prática do jogo político.
Segundo o SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação, há dois tipos de UC: as de proteção integral, como os parques estaduais e nacionais, e as de uso sustentável, como as APA – Área de Proteção Ambiental[1]. Todas possuem, ou devem possuir, um conselho gestor composto igualitariamente por conselheiros representantes do poder público e da sociedade civil. No entanto, é comum as UC apresentarem condições precárias de operação, o que as torna pouco conhecidas, pouco apoiadas e, portanto, pouco valorizadas e de baixíssima efetividade. Isto significa que ali crimes ambientais ocorrem e não são combatidos: invasões de manguezais, margens de rios e lagoas, desmatamento, caça e pesca predatória, construções sobre áreas frágeis como dunas e restingas, poluição de nascentes com efluentes ou despejo de resíduos...
A quem interessa esta situação? Por que a população não se mobiliza e cobra das autoridades que os orçamentos incluam recursos adequados às UC? Por que as pessoas se calam e os políticos não adotam a bandeira das UC como plataforma eleitoral?
A resposta é simples: só nos mobilizamos quando sentimo-nos ameaçados, quando nos apresenta um inimigo comum. Na verdade, uma UC ativa, forte, presente no pensamento de empresários, moradores e membros de comunidades de dentro ou próximas à UC, é uma ameaça aos “interesses individuais”. Raramente se vê “mobilização preventiva”, ou seja: -“Não sei que tipo de ameaça pode surgir, mas acredito que uma UC ativa e visível seja uma boa forma de me preparar para elas e, para isso preciso participar de reuniões, conversar muito, aceitar divergências, estudar, preparar-me, dedicar-me”. Normalmente esperamos que o poder público preocupe-se por nós, mas esquecemo-nos de cobrar atitude e demonstrar insatisfação se a ação é falha. O que acontece costuma ser assim: -“Precisamos nos reunir! Precisamos fazer alguma coisa! Mandem mensagens via internet! Ninguém nos consultou! Por favor, façam algo, pois vou me prejudicar e isso pode prejudicar outras pessoas! Quem mexeu naquela situação tão confortável em que nos encontrávamos?!”.
Se, por interesses além das fronteiras regionais, pleitearem o uso de áreas protegidas para instalações não previstas e que poderiam significar degradação socioambiental, como podemos estar preparados para, efetivamente, argumentar, analisar e apontar alternativas com isenção e, até, se não houver nenhuma, apontar condições para que a intervenção contribua com a gestão ambiental regional e seus impactos negativos sejam diminuídos e controlados?
Sim, uma UC forte é importante para a sociedade e não apenas para preservar recursos socioambientais, mas para utilizar seus principais instrumentos[2] de forma a direcionar e iluminar debates: “Que respostas e alternativas podemos dar à sociedade perante as demandas de utilização daquele espaço que pretendemos ser mais útil preservado do que transformado?”.
Recebemos maior poder de decisão quando uma UC é criada, mas precisamos efetivá-lo com participação direta ou através de ações que contribuam com seu fortalecimento e reconhecimento como patrimônio da sociedade.
Estamos aprendendo, e não sem desgaste e polêmica, na dura realidade da APA da Lagoa Encantada e Rio Almada, no sul da Bahia, que o debate sobre a proposta do Porto Sul evidencia as deficiências da relação da sociedade com suas UC. Em 15 anos de existência essa UC não conseguiu a mobilização e visibilidade alcançada a partir da divulgação dos planos do governo estadual. Não conseguimos sensibilizar gestores públicos e nem estes a população, sempre com as armas da democracia, o suficiente para que a APA fosse reconhecida como instrumento de preservação e desenvolvimento sustentável regional e, assim, preparar a população para debates como o atual.
Agora, precisamos aprimorar o diálogo entre os proponentes e a sociedade e, mais do que nunca, buscar formas de apoiar outras UC para que a resposta da sociedade a situações semelhantes possa ser rápida, consistente e muito consciente.
[1] O SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação estabelece dois grandes grupos de unidades, as de proteção integral, que admite apenas o uso indireto dos seus recursos naturais e as de uso sustentável, para promover a utilização dos recursos naturais de forma a preservá-los para gerações futuras.
[2] Plano de Manejo, Zoneamento Ecológico-Econômico, Conselho Gestor
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