sexta-feira, janeiro 22, 2010

ENSAIO SOBRE O TRABALHO (1)

O trabalho enobrece. É verdade? Acabo de ler um trecho do livro de Luc Ferry, “A Nova Ordem Ecológica”. Ferry foi ministro da educação da França e é um premiado filósofo e autor de mais de 15 livros. Ele falava da “civilização” e de como alguns povos ficaram à margem, na periferia da cultura europeia. A Norte e a Sul. Sua teoria é de que a Terra teria sido povoada pela influência da guerra, das disputas. E justifica, com a pergunta: “Por que razão seres humanos teriam resolvido se estabelecer nas áreas hostis do Grande Norte?”. São regiões tão hostis, que os habitantes vivem em casas de gelo e comem carne crua de animais que caçam. Ele utiliza este raciocínio para combater, também, o conceito de racismo, pois teria sido a natureza, e não a raça, a levar o homem à marginalidade. Por que isto pode ser importante e o que tem a ver com trabalho? Veja como ele segue o pensamento. Vale a leitura. Ele fala de nós.



“No Sul, a situação, mais favorável na aparência, é pior na verdade. Por um motivo simétrico, porém inverso: o índio vive em condições naturais tão generosas que não há nenhuma necessidade de enveredar por essa aventura estranha e desenraizante que é a cultura. O clima lhe permite não se vestir, os frutos do mar e da terra o autorizam a se poupar do trabalho da criação ou da agricultura.”

O objetivo desta sequência de informações era chegar ao direito que teriam os animais, pois, por não possuírem uma cultura –não se estuda a história dos cavalos...-, se justificaria estarem à disposição dos humanos. Ele queria mostrar que ter ou não uma cultura, ou se a cultura é rica ou pobre, não é justificativa para depreciar uma espécie, no caso, todos os animais, que sofrem em mãos dos humanos. Ao invés de racismo, seria, segundo ele, um “especismo”.

Mas, voltemos à teoria sobre o trabalho. É uma necessidade proporcional à expectativa e ao que lhe é, naturalmente, oferecido. Se lhe trouxessem agasalho no frio, abanos no calor, bebidas na sede e alimento, na fome, você trabalharia? Lembro de “Admirável Mundo Novo”. Uma ficção (?) em que seres humanos eram fabricados em laboratório e não existiam famílias. Todos sabiam muito bem sua função na estrutura social, e não pretendiam ascender. Como? Simples. No processo de desenvolvimento dos fetos, oxigênio era suprido na proporção suficiente para limitar ou expandir capacidades cognitivas, intelectuais. Pouco oxigênio, operários. Muito oxigênio, gênios. Todos eram orgulhosos, por determinação de seus líderes, de seu degrau social.

Vejo, então, um rapaz esguio, provavelmente muito pobre, empurrando um pequeno carrinho de sorvetes, esses sorvetes feitos com água suspeita. É este trabalho que lhe coube em nossa sociedade. Claro que ele não gosta de vender sorvetes. Claro que ele só faz isso porque não lhe passou pela cabeça outra maneira “eficiente” e digna de ganhar dinheiro e, assim, alimentar-se e consumir. Em nossa sociedade há a possibilidade de ascensão social. Este é o objetivo, então, do trabalho. É, sim, uma necessidade. Temos que nos acostumar com ela e fazer com que possa ser minimamente prazerosa.

Ao contrário de meus colegas na época pré-universitária, hoje é muito mais comum encontrar jovens cujo objetivo “profissional” é prestar concurso para um órgão público qualquer e esbaldar-se à sombra de suas garantias. Sim, pode ser uma noção de realidade superior.

- Já que temos que trabalhar, que seja um ofício que ofereça bom salário e garantias.

Um figurão de um órgão qualquer, burocrático e cuja função implique em baixíssima criatividade, trabalha feliz? Vive feliz? Tem um emprego, uma família, imóveis, frequenta clubes... Mas é feliz? Sim, não nego, pode ser feliz. Se criatividade não for seu talento. Se liberdade não for sua ferida. Isso faria um artista, ou um professor, mais felizes? Depende do quanto seus talentos são desenvolvidos e aproveitados. Depende do quanto eles sentem-se livres para escolher rumos.

Há pouco tempo uma pesquisa desmascarou de vez a felicidade como algo proporcional à posse de bens materiais. Garantido um mínimo de renda e posses, aquele nível em que a dignidade esteja garantida, nada indicou que, daquele ponto em diante, a felicidade seria aumentada. Ou seja, vale a pena comprometer talento e criatividade em nome da “estabilidade” e recursos materiais?

Ferry também cita o argumento de alguns autores de que seria, justamente, a liberdade de decisão que nos diferenciaria em relação aos animais. Podemos decidir não comer, mesmo famintos. Podemos decidir matar um touro, mesmo que não faça o menor sentido na relação de nossas espécies. Para ele esta liberdade é uma característica da espécie humana, mas não nos habilita a sermos os donos do planeta.



Por outro lado, ainda, o pescador da aldeia sente-se feliz ao suprir demais moradores com o fruto de seu trabalho. É recompensado com sapatos de couro, utensílios para sua moradia e outros alimentos importantes. Seus vizinhos, na aldeia, também realizam-se por sentirem-se úteis. A discórdia, atritos, desgastes, apenas aparecem quando alguém dali resolve não contribuir em proporções satisfatórias com a “coletividade”. Estes, encostam-se e usufruem sem esforço. Ou são expulsos ou acabam sendo referência para outros e, então, responsáveis pela decadência da aldeia.

Nossa “grande aldeia” precisa, então, de membros que, por seu talento e usufruto de sua liberdade, sirvam à coletividade e sejam recompensados por isso. E, não, daqueles que escondem seus talentos e pensam ganhar a felicidade como “os povos do sul”: caindo do céu!